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Conversações de Fronteira: Maria Lugones

Foto do escritor: Time JanainasTime Janainas

Talvez o texto “Colonialidade e Gênero” seja o mais famoso da grande filósofa argentina, mas nessa conversa de fronteira o jogo e o brincar ganham a vez



Imagem: Bazar do Tempo


Não é nenhuma surpresa que eu traria Maria Lugones como a primeira conversa de fronteira aqui do Perspectiva, Lado B, já que desde o verão de 2017 vivo a lado a lado com o pensamento da autora: primeiro a li em São Paulo através de seu artigo mais conhecido – exatamente, Colonialidade e Gênero – e no verão de 2019 (o mundo, antes da pandemia), participei de uma aula extraordinária sobre o texto da coluna de hoje, em uma escola de verão na Holanda - uma tradução interessantíssima de mundos, a propósito.



Conversações

Imagem: Arquivo pessoal



Playfulness, “World”-Travelling, and Loving Perception - publicado em 1987 na grandiosa revista feminista Hypatia (Cambridge University Press) traz alguns tempos:


o da consciência horizontal e vertical entre gerações de mulheres latino-americanas, quando o legado colonial que conhecemos está alinhado à exploração e subhumanidade;

o da consciência (interseccional) migrante;

a alienação do migrar do Sul para o Norte;

e então estratégias de enfrentamento – neste último tempo, o pulo da gata: o jogo e o brincar ganham a vez 

mudando as regras e os objetivos do viver e desenhando um lar criativo para as cansativas demandas fronteiriças.


Como nos disse Octavia Butler, "não há fim para o que o mundo-vivo vai demandar de você" - (e para quem ainda não a leu, recomendo iniciar por Kindred e então navegar por toda a sua criação fundamental de mundos) - mas, para este ilimitado demandar do mundo, Lugones noz traz algumas pistas.



As confusões

Lugones fabula sobre algumas das raizes de alienação e confusão do migrar: em seu diagnóstico, existe uma maneira já codificada e organizada que rege o viver no país ao qual nos mudamos (nós, mulheres latino-americanas, geralmente aos países do Norte para melhores condições e, até mesmo, reconhecimento), a qual nos inserimos muito posteriormente como migrantes e em que, automaticamente, somos lidas como “as de fora” (outsiders). 


Sem garantias de que os nossos sentimentos de confusão se dissipem, Lugones diagnostica alguns aspectos do "sentir-se em casa" - quando não estamos em casa - em um determinado mundo:


Primeiro,

conhecer a língua daquele mundo – seja ela o idioma de onde se vive, ou os termos específicos de algum mundo (no mundo literário se fala de uma maneira, o mundo “woke” tem seu próprios termos e assim vai. Isto, ao mesmo tempo, exclui/isola aqueles que não falam aquela língua ou conhecem os discursos, códigos e práticas de cada "mundo".)


Segundo,

ser – ou performar – uma alegria normativa: concordar com todas as normas daquele local, daquele mundo e, o mais importante: não contestá-las. 


Uma segunda forma de ser “feliz” é poder ser, ou fazer, apenas aquilo que se consegue fazer: como ao pertencer a um grupo em que tudo se encaixa e é possível sermos nós mesmas - uma grande raridade ou até mesmo um luxo, diga-se de passagem.


Terceiro,

estar rodeada de pessoas que nos demonstram afeto e pelas quais também podemos demonstrar afeto. - pensando-se aí também os grandes desafios do carinho em um país tão endurecido como a Alemanha.


Quarto,

ter a possibilidade de compartilhar o dia-a-dia, compartilhar histórias com as pessoas ao nosso redor: e, daqui, passamos para o brincar.



E então, o brincar


O brincar (playfulness) para Lugones não é apenas uma estratégia de enfrentamento do entre-mundos: é também uma maneira de manter-se próxima de si, aberta e livre. "Eu tenho um grande medo de me tornar uma pessoa sem multi-dimensão" (tradução livre, p.15) diz a autora.


Quando Lugones nos fala sobre multi-dimensões, ela também nos conta sobre as camadas que adquirimos e/ou trazemos conosco quando viajamos mundos: não seremos o projeto de lugar onde moramos, nem o projeto de lugar de onde viemos.

O brincar é o partilhar e o tornar mais saboroso o dia-a-dia, o desfrute dos tempos, por mais obscuros que eles sejam enquanto ainda não chegamos na catástrofe. Esse é um momento de incertezas, de ansiedades, de grandes maquinários mirando ao medo e ao fim. Como migrantes, temos medo: se teremos tempo de ir, o que acontecerá conosco, de deixar tudo o que construímos para trás, e para o que voltaremos quando chegar a hora.


Quando brincamos, seja com uma palavra, um alemão-portuñol dizendo "desfrutiere"

quando partilhamos momentos horizontais - uma história, uma memória, uma bobeira, algo importante - retiramos da agenda as maneiras verticais do medo e do horror, nos reconstruímos em multi-dimensão. O lado negativo desse exercício, contudo, é a falta de balanço: é preciso também ter a sensibilidade de levar a sério os momentos que pedem por tal e, principalmente, o respeito e solidariedade com o lugar do outro.



Concluindo...

Encontrando um certo equilíbrio - ou o desafio dos desafios quando não estamos em casa - dá certo. Para encerrar, a passagem do texto que sempre me causa uma grande pensação:


Playfulness is, in part, an openness to being a fool, which is a combination of not worrying about competence, not being self-important, not taking norms as sacred and finding ambiguity and double edges a source of wisdom and delight. (p.15)


Sabedoria e desfrute, companheiras.


Até loguinho e um grande abraço, Natalia Pais Fornari Perspectiva, Lado B



 


A primeira vez que dividi esse texto publicamente foi na aula piloto da Afelia Núcleo de Estudos em Setembro de 2023, no projeto "As Quartas São Nossas" da Janainas e.V.. Estavam presentes: Leticia, Evelyne, Ana, Mariana e Marina e eu.


Nos propomos em criar um ferramental feminista - como Sarah Ahmed já nos disse - com uma lista dos nossos enfrentamentos brincantes vivenciados em nossas migrações. A aula deu início ao nosso núcleo de estudos com encontros mensais, o qual já discutiu grandes autoras decoloniais como Gloria Anzaldúa, Conceição Evaristo e Audre Lorde.



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Lindo texto! Em um lugar tao rigido e endurecido como a Alemanha, realmente trazer a brincadeira para nossas vidas é essencial para trazer leveza na jornad de imigracao.

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